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26 Jan
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Artigo
Sobre morfinas, terrenos e o 8 de janeiro
Pedro Amorim de Souza

Em dois textos fundamentais para o Direito Penal e a Criminologia de nosso país, Clarice Lispector apresentou, de forma muito clara e direta, todo seu ceticismo com a punição como forma de solução de conflitos de transformação social. Em Observações sobre o direito de punir, de 1941, a jovem estudante de direito Clarice, no auge da Reforma Penal de 1940, compara a punição penal a uma espécie de “morfina” para as “dores da sociedade”; no famoso conto Mineirinho, de 1962, uma Clarice escritora consagrada e mais madura, mas ainda muito coerente, imortaliza uma das críticas mais ferrenhas aos justiçamentos, às execuções policiais e penas ilegais, e, vendo no direito penal a “casa” erguida sob o “áspero” terreno da desigualdade e da injustiça, convida o leitor para a ousada (re)apropriação deste, sem o qual qualquer “casa”, por “nova” que fosse, nada mudaria.

No dia 8 de janeiro de 2023, uma semana após a posse presidencial mais democrática de sua história, tanto nos seus procedimentos, como na sua simbologia, o Brasil (ou a parte minimamente civilizada dele) assistiu, em choque, à tentativa violenta e brutalizante de golpe de Estado, promovida pelas mesmas forças que, nos últimos quatro anos (ou seis, se o marco for o impeachment de 2016), promoveram abusos, violências (sociais, policiais, culturais, políticas, econômicas) e retrocessos que fizeram emergir dos porões de sua história os piores Brasis: a lei do mais forte e o necropoder rural colonial; o despotismo imperial, nem sempre ilustrado; o cabresto e o clientelismo centrônicos a la República Velha; o militarismo urbano crônico desde a República da Espada, passando pela Era Vargas até a Ditadura Militar. O pior do que nunca conseguimos deixar de ser: elitista, brutalmente desigual, brutalmente violento, brutalmente – e, nos últimos quatro anos, em especial -, debochadamente e orgulhosamente ignorante.

Após o terrorismo dos atos do 8 de janeiro, as instituições – em maior ou menor medida, espontaneamente ou sob pressão – reagiram e vem reagindo ao pior ataque já sofrido por nosso precário regime democrático, aquele duramente (re)conquistado em 1988. Boa parte dessas reações, até o momento, vêm ocorrendo no campo punitivo: inquéritos, investigações, prisões em flagrante, processos criminais – o que é necessário, urgente e aqui não se questiona, a despeito de eventuais excessos a serem apurados judicialmente. Porém, toda essa (re)ação punitiva vem transmitindo, de forma afoita e preocupante, mensagens no mínimo questionáveis: de que “as instituições estão funcionando”, que “a democracia venceu” e, o que parece ainda mais problemático, de que seria precisamente o ato de punir – e só ele, ou principalmente ele, ou prioritariamente ele – o responsável por “salvar” o Regime de 1988 (ou o que resta dele).

Quando o Direito Constitucional se vê rebaixado à pouco elevada ou edificante imagem de um balcão de cartório de Delegacia – no caso, lotada e sobrecarregada; quando se espera conquistar e reconquistar direitos punindo – algo bastante incomum, no mínimo, na história do Poder Punitivo (direitos foram reconhecidos mais frequentemente pelo inverso); quando constitucionalistas convidados (excelentes e merecedores dos melhores elogios, de modo geral) para comentários e esclarecimentos pela mídia parecem falar mais de Direito Penal e Processo Penal do que de Direito Constitucional, há algo de errado. E não é de hoje.

Podemos mesmo creditar a “salvação” da República, exclusivamente, à punição penal? Parece tentador, nesse momento, responder que sim. Contudo, em outros momentos não tão distantes, para tantas outras pessoas não tão distantes, também parecia que sim. Veja, por exemplo, a Operação Lava-Jato e seus incontáveis descaminhos: deu no que deu.

E os mais de 153 pedidos de impeachment do ex-Presidente Bolsonaro durante o seu mandato? As incontáveis possibilidades de cassação de suas candidaturas ao longo de sua trajetória política por falas discriminatórias, preconceituosas, de elogios macabros à Ditadura Militar e a torturadores do regime, de apologia da letalidade policial? A inércia legislativa (por vezes, conivente, por vezes, aderente) com todo o desmonte de políticas públicas de saúde, educacionais, culturais, sociais, econômicas promovido pelo Executivo nos últimos seis anos, pelo menos?

Depois do 8 de janeiro, o Título XII do Código Penal, que traz os Crimes contra o Estado Democrático de Direito (muitos dos quais já existentes na mofenta e abolida Lei de Segurança Nacional), inserido pela Lei n. 14.197/2021, foi relembrado até mesmo por nossos penalistas, que ou o ignoraram, ou acreditavam que não seria utilizado tão cedo. Mas, se o que pode ser “crime” já é algo tão subjetivo (afinal, com a jovem Clarice de Observações, “a própria representação do crime na mente humana é o que há de mais instável e relativo”), definir o que possa ser um “crime contra o Estado Democrático de Direito” pode ser tarefa ainda mais ingrata, mais ainda num país como o Brasil, mais ainda considerando sua história recentíssima.

Como chamar o poder de um único parlamentar de destinar bilhões de reais do orçamento para outros parlamentares que não se sabe quais são, para finalidades incontroláveis, que podem ser até mesmo estapafúrdias (para dizer o mínimo), como compra de tratores superfaturados? Essa prática ficou conhecida como “orçamento secreto”, e, apenas por 6 a 5 ao final de 2022, o Supremo a proibiu. Ninguém foi punido ou responsabilizado pela prática.

Pensar nessas questões significa assumir a dúvida sobre o limite dos tipos penais em discussão e o limite do próprio direito penal. Os crimes contra o Estado Democrático de Direito abarcam apenas algumas das ações perversas que foram diariamente executadas ao longo desses seis anos. Muitas delas, no entanto, são vistas como naturais ou necessárias ao “jogo político” ou consequências de tempos de crise. Não há nada de necessário no “orçamento secreto”; não há nada de comum na forma pela qual a crise da pandemia foi conduzida pelo Executivo federal.

Como chamar o armamento em massa da população civil brasileira, que cresceu 473% de 2018 a 2022, a ponto de o Exército não saber sequer o tamanho do arsenal de CAC’s (caçadores, atiradores esportivos e colecionadores) em cada cidade brasileira? De Decreto em Decreto, ao longo dos últimos quatro anos, ninguém foi responsabilizado por incitar a violência e a justiça pelas próprias mãos, e o resultado foi, em especial, o recorde de feminicídios alcançado no primeiro semestre de 2022.

O Brasil tem aproximadamente 2,7% da população mundial e possui quase 13% das mortes por COVID-19 no mundo. O ex-Presidente da República incentivou aglomerações, desrespeitou medidas de isolamento social, fez chacota de pessoas contaminadas, desacreditou, se recusou, e, enfim, atrasou grosseiramente na compra de vacinas, estimulou o uso não científico de remédios e tratamentos reconhecidamente ineficazes. Uma CPI foi instaurada, um denso e longo relatório foi produzido, e, sem ela, a vacinação seria ainda mais prejudicada, certamente. Mas ninguém foi responsabilizado. Quatro em cada cinco mortes são atribuíveis à má conduta do ex-Presidente, o que o faz potencialmente responsável por algo em torno de 480 mil mortes. Não seria despropositado chamar isso de genocídio – crime no Brasil e no Direito Penal Internacional -, mas, aparentemente, não colou.

Nos últimos quatro anos, assistimos, de pouco em pouco – ou de muito em pouco, o que soa mais apropriado -, a prática de inúmeros atos, ações e omissões, alguns escondidos nas sombras da noite, outros desavergonhados à luz de dias tornados noites de tão sombrios, que, em conjunto, quase destruíram o pouco Estado Democrático de Direito que resistia. Acima, listamos apenas uma pequena parcela de atos praticados por pessoas muito poderosas em posições muito importantes, atos que não correram o mínimo risco de serem remotamente rotulados “crimes”. Apenas depois do pior, do inesquecível 8 de janeiro, o Poder Punitivo foi efetivamente mobilizado, alcançando uma pequena parcela de milhares de pessoas, de modo geral sem ou com pouco poder real de decisão, capacidade de comando ou de influência. Vitória da democracia?

Punir os atos antidemocráticos é, então, uma necessidade incontornável, mas apenas punir tais atos não é suficiente. Contentar-se com os bodes expiatórios, com a queda de poucas centenas de pessoas – essas que agora são a vitrine mais aberrante e tosca do bolsonarismo -, poderá fazer com que ignoremos as profundas implicações dessa que é a ideologia mais cruel a se apoderar de nossas instituições nas últimas décadas.

É preciso entender o bolsonarismo não como um evento isolado ou a radicalização de um pequeno grupo já identificado e preso ou em processo de identificação. O bolsonarismo é uma estratégia complexa em uma guerra de narrativas travada em todos os campos da Democracia e da vida social brasileira, ativando simultaneamente uma série de dispositivos jurídicos, administrativos e cognitivos para alcançar hegemonia. Combatê-lo demanda sobriedade em ver no direito penal um sistema limitadíssimo de justiça sociopolítica, a sobriedade de prezar por uma responsabilização mais ampla, alcançando mesmo aquelas pessoas que, por uma ou outra razão, não estejam ao alcance da pena em sentido estrito. Sanções administrativas, políticas, discussões amplas nos principais canais de notícias: todos esses mecanismos servem à definição e a implicação de outros tantos personagens que permanecem intocados e intocáveis. A mudança de percepção sobre esses mentores da ideologia bolsonarista e a sua eventual responsabilização passam pela luta contra a desigualdade sistêmica, a mesma que, no dia a dia, seleciona cuidadosamente as pessoas que deverão ser punidas – e como serão punidas – com base menos no que fizeram e mais em seu CEP, força financeira, cor e projeção política.

Com Clarice, interpretando Observações sobre o Direito de Punir e Mineirinho em conjunto, percebemos que punir, essa morfina para nossas dores, não é mais do que uma tentativa desesperada de construirmos casas melhores mantendo o impróprio terreno das desigualdades e da injustiça intocável. Sem ações realmente, urgentemente democráticas, e não necessariamente punitivas – como, por exemplo, mais transparência na administração pública, políticas públicas de promoção de educação e cultura democráticas desde a formação escolar, combate a fake news e desinformação, fortalecimento das Universidades Públicas, o emprego da morfina punitiva terá que ser cada vez mais frequente e em doses cada vez maiores. O resultado será uma democracia entorpecida que se equilibra de pé com muito esforço e um bocado de sorte, em um terreno cada vez mais instável.

A força punitiva, o espetáculo e a schadenfreude decorrente também tornam enevoado tudo aquilo que não está inserido no presente. A violência se produz no agora e seu efeito anestésico torna difícil olhar para o passado e para o futuro. Naquele momento, punir parece o suficiente – pois é a medida da violência antes praticada e agora aplicada contra os terroristas que a praticaram em primeiro lugar. Ocorre que o tempo, em sua dimensão de memória, é implacável com quem o ignora – e retorna para assombrar-nos aqui e ali. Foi o nosso esquecimento, bem como a ausência de punição aos envolvidos com a ditadura civil-militar recente, que possibilitou a ascensão do bolsonarismo e, por consequência, os próprios atos do dia 08 de janeiro.

Por isso, é importante entender que punir é parte de um processo longo e complexo que passará, necessariamente, pelo lembrar. As instituições, ou mesmo a democracia, não funcionam porque punimos hoje uma classe média e média alta envolvida em atentados contra o Estado Democrático de Direito; as instituições funcionam quando lembramos disso, nomeamos essas pessoas e seus atos, construímos uma narrativa de repulsa às suas ações e sustentamos essa narrativa no tempo.

Toda a nossa percepção é memória. O presente experimentado é da espessura de um fio de cabelo, tão frágil e passageiro quanto uma palavra falada ou um jogo de olhares. O gozo punitivo também é fugidio assim, e tão logo o experimentamos, seguimos em frente como quem sai de uma casa de shows após o último bis; ao mesmo tempo, por si só, gera ressentimento em quem se vê punido pelo que acredita – por mais absurda, assustadora e deletéria que sua crença possa ser. Isso significa que não apenas essa punição deve ser muito bem justificada, como devemos querer algo além dela, algo que consolide a narrativa democrática vitoriosa e deslegitime os reacionários vencidos, solidificando na história a responsabilidade dos envolvidos pelo ataque aberto à nossa Democracia.

Essa Democracia deve ser a das histórias contadas, da memória coletiva saudável – o terreno que talvez Clarice entendesse como menos áspero, menos desigual -, da deferência ao passado e aos sacrifícios de todos que vieram antes de nós. Deve honrar o que a muito custo materializou-se na Constituição, especialmente em seu art. 216: todos nós temos direito às nossas histórias e uma sociedade não sobrevive sem as suas narrativas. Hoje, precisamos escolher – e defender – a nossa.

Hamilton Gonçalves Ferraz é professor adjunto de Direito Penal da UFF, professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da UFF (PPGDC-UFF) e coordenador adjunto do Departamento de Infância e Juventude do IBCCRIM.

Pedro Amorim é advogado, artista visual e pesquisador. É graduado pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro, pós-graduado em fotografia e imagem pelo IUPERJ, além de Mestre e doutorando em Teorias Jurídicas Contemporâneas pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.

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