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2 Jun
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Artigo
Políticas públicas em tempos de crise
Pedro Amorim de Souza

Ao tratar da gestão dos recursos escassos do Estado, especialmente aqueles diretamente voltados à implementação ou fortalecimento de direitos fundamentais de seus cidadãos, precisamos pensar em como, por que e para quem é pensada uma política pública. Ocorre que, com certa frequência, essas questões se perdem em meio à criação afobada e pouco técnica de ações e programas. Assim, a ausência de metodologias adequadas e de certa padronização organizacional na elaboração e efetivação dessas políticas acaba fazendo com que alcancem  apenas uma fração do sucesso esperado.

Há também aquele conjunto de ações orientadas exclusivamente pelos ideais políticos de grupos bem colocados nos espaços de poder do executivo, programas construídos sem qualquer respaldo científico além da “vontade de dar certo”, um wishful thinking administrativo baseado em ideias etéreas, soluções milagrosas e desenvolvimentos morais questionáveis. Essas ações confiam em um não-método, uma vez que qualquer escrutínio mais cuidadoso revelaria a necessidade de modificar toda a lógica por trás da sua construção.

O período compreendido entre 2018 e 2022 – a totalidade do governo Bolsonaro, portanto – se mostrou terreno fértil para o surgimento desses casos. Foram comuns as notícias sobre desmontes de políticas públicas de longo prazo, bem como de implementação de novas políticas desastrosas, dentre as quais uma se mostrou especialmente trágica. A história já é por todos conhecida, mas não custa relembrar. De fato, é imperativo que não a esqueçamos: as falhas políticas de combate a Covid-19 a nível federal, fruto do planejamento de ações e de manifestações baseadas na preferência do chefe do Executivo por tratamentos milagrosos e artigos “científicos” sensacionalistas, por experimentações com medicamentos comprovadamente ineficazes e pela falta de cuidado com vidas humanas – em nome, supostamente, da economia.

Evidente era o desprezo às diretrizes internacionais sobre o vírus e a pandemia, todas estabelecidas com respaldo científico, sob o argumento de que o “Brasil não poderia parar”; o pouco caso com a gravidade do problema levou a um incremento significativo no número de mortes pela doença. Em 2021, já se estimava que 4 entre 5 mortes poderiam ter sido evitadas a partir da mudança de postura do governo federal. E mesmo estimativas mais conservadoras tendem a culpar o Executivo da era Bolsonaro pela perda desproporcional de vidas humanas durante o período.

Para evitar que isso se repita, devemos compreender que uma política pública não surge do nada, não nasce da mera vontade do administrador, razão principal pela qual também não deve ser guiada somente por ela. Políticas públicas são fruto de necessidades humanas e existem no cruzamento entre alocação de recursos em geral escassos e antecipação ou observação de uma demanda social específica. Ela é, portanto, baseada na realidade material que nos cerca, nas coisas do mundo e na vida social, política, econômica e cultural de uma determinada coletividade.

É necessário que apliquemos métodos de percepção dessas demandas, de forma que possamos observar os fenômenos sociais que as causam da maneira mais confiável possível. Uma distorção no processo de análise das demandas sociais é, em última forma, o primeiro passo para uma compreensão equivocada dos problemas que aquela futura política pública deve endereçar. Assim, se a opinião majoritária no alto Executivo iguala a Covid-19 a uma gripe, qualquer política pública desenvolvida a partir dali considerará que a pandemia não é tão grave.

Mas a realidade não tem o costume de se dobrar à vontade de um ou outro gestor, de forma que o resultado de uma política pública que a ignora é, na melhor das hipóteses, a irrelevância. Em outros casos, a abordagem de estilo livre, atécnica e alheia a qualquer método resulta em perdas irreparáveis: a morte em grande escala.

Por isso, a discricionariedade administrativa na elaboração de um projeto sobre determinado tema deve ser considerada à luz de alguns princípios limitantes. E por mais que o objetivo fundamental desses programas seja o de efetivar o princípio-mestre da dignidade da pessoa humana, o procedimento todo deve ser por ele instruído. Isso significa, por exemplo, não instrumentalizar a vida das pessoas destinatárias das ações públicas a partir de experimentos voltados a provar um ou outro ponto ideológico defendido pelos gestores. Também significa basear-se em dados concretos para a compreensão dos problemas e o desenvolvimento de soluções.

Podemos trazer do direito ambiental o princípio da precaução: trata da importância de evidências para o planejamento e execução de ações sustentáveis, uma vez que as ações que não se apoiam em evidências científicas razoáveis podem gerar danos irreversíveis ao meio-ambiente. Essa característica de irreversibilidade em muito se assemelha à que observamos no caso de emergências de saúde pública: não há retorno da morte, então há menos espaços para erros. O ônus argumentativo do gestor displicente deve ser proporcional ao que está em jogo, e o controle sobre as políticas públicas críticas deve ocorrer não apenas sobre o seu resultado, mas sobre seu método e consequências previstas.

Isso não significa cercear a discricionariedade do administrador em sua origem, mas direcioná-la aos elementos concretos, à realidade que deve instruí-lo. É falar do dever de diligência da Administração Pública, ou do conceito de Política Pública Baseada em Evidência. É possível exigir da Administração que aplique métodos minimamente transparentes, previsíveis e de eficácia comprovada para a consecução das políticas públicas a partir do uso técnico e legítimo de evidências, bem como demandar que esses processos elaborativos respondam a necessidades concretas e ouçam seu público-alvo.

Aqui, cabe pensar em como deverá ser feito esse controle sem que haja, de fato, uma violação à discricionariedade legítima da administração. Quem pode dizer qual é o melhor método a ser utilizado na elaboração da política pública? O quão evidente deve ser esse descaso com dados científicos e questões de fato para que possamos considerar como ilegítima a elaboração de uma política pública? Como será feito o diálogo institucional a partir daí?

Uma coisa é certa: a discricionariedade da Administração deriva da sua independência em relação aos demais poderes e da indisponibilidade do interesse público. Logo, o Executivo materializa as políticas públicas porque consegue perceber necessidades sociais e elaborar respostas eficientes e tempestivas. Preserva-se, assim, o interesse público. Mas a coisificação da vida humana é, por definição, uma violação à indisponibilidade do interesse público. No caso da pandemia, o atraso na compra e distribuição de vacinas e a divulgação da ivermectina e hidroxicloroquina como medicamentos eficazes indica que o Estado transformou a população em cobaia de um experimento de grande porte, apostando com vidas em um resultado que se provou, como previsto, desastroso. O direito à saúde e à vida, bem como a confiança do indivíduo nos órgãos técnicos do governo, foram moedas de troca servindo ao avanço do negacionismo, e as ações ocorridas nesse período nos legou pouco mais que ausências.

* Mário Henrique é advogado especialista em Direitos Difusos e Coletivos do Martins Cardozo Advogados Associados. Pedro Amorim é Mestre e Doutorando em Teorias Jurídicas Contemporâneas e coordenador da área consultiva do Martins Cardozo Advogados Associados

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