Na véspera da eleição do segundo turno, realizada no último dia 30 de outubro, o diretor da Polícia Rodoviária Federal postou, em sua rede social no Twitter, mensagem de apoio ao então candidato Jair Bolsonaro. No dia do pleito, após diversas confusões relacionadas a operações de trânsito incomuns e criticáveis do ponto de vista republicano-democrático, em virtude dos transtornos e das dificuldades para o acesso de diversas pessoas aos locais de votação, o diretor apagou sua postagem.
Um grupo de juízes protestou, em abril de 2016, na praia de Copacabana, contra o impeachment da então presidenta Dilma Rousseff. Em ambas as situações, está em jogo o exercício da liberdade de expressão por servidores públicos do Estado. De fato, os juízes e os membros do Ministério Público não podem exercer atividade político-partidária (artigos 95, parágrafo único, III, e 128, § 5º, II, e, da CF), enquanto os demais funcionários do Estado não possuem tal vedação a priori.
Contudo, ambos estão em relação especial de sujeição[1]. Isso significa que, em certos casos, essas pessoas terão uma limitação de seus direitos fundamentais em virtude de uma relação jurídica específica que possuem com as instituições estatais. Esse liame impõe um conjunto de deveres e de obrigações mais abrangentes do que às pessoas em geral[2], o que justifica uma restrição proporcional de determinados direitos fundamentais, para o adequado funcionamento de instituições do Estado.
Por outro lado, a liberdade de expressão ocupa uma posição preferencial no ordenamento jurídico. Possui um valor intrínseco, porque a liberdade de expressão está associada à necessidade humana de se manifestar. É uma projeção da personalidade na sociedade, pois as opiniões e as manifestações são um importante traço da dignidade humana. Ao mesmo tempo, a liberdade de expressão é instrumental para a democracia, ao garantir que o debate público seja aquecido com diferentes argumentos, ideias e pontos de vista[3].
Não é difícil imaginar que determinadas manifestações de servidores públicos podem colocar em risco a própria legitimidade da ação estatal. No caso do Diretor da Polícia Rodoviária Federal, a postagem a favor do candidato Jair Bolsonaro no dia anterior das eleições minou a legitimidade das operações: era impossível dissociar o aumento de ações no país da publicação ocorrida no dia anterior. Ainda que houvesse motivos de razões públicas — ou seja, uma argumentação justificável no fórum público sobre questões constitucionais e fundamentais básicas do Estado democrático de direito e que pudesse ser endossada por todos os cidadãos[4] —, aos olhos dos eleitores e das instituições, a medida apenas denotou alinhamento do agente público com o candidato à Presidência da República que, até então, era seu chefe.
É preciso estabelecer parâmetros que garantam o exercício da liberdade de expressão dos servidores públicos, que se encontram em relação especial de sujeição, sem restringir, de forma desproporcional, seus os direitos políticos e suas liberdades. Ao mesmo tempo, os agentes estatais não podem agir de forma que comprometa as garantias constitucionais e democráticas básicas.
O ideal que buscamos é o da garantia da liberdade de expressão de servidores públicos, de modo que a institucionalidade das funções de Estado e, em última medida, os ideais constitucionais — o que Rawls chamou de elementos constitucionais essenciais — não sejam comprometidos pelo exercício dos direitos e das liberdades individuais. De certa forma, o objetivo é retirar dos argumentos veiculados por agentes estatais na esfera pública o caráter legitimador da autoridade estatal. Partimos do princípio de que determinadas pessoas bem inseridas na estrutura do Estado possuem maior peso argumentativo no debate público, em virtude de uma espécie de "argumento de autoridade". Essas posições tendem a legitimar posições a priori, independentemente da qualidade argumentativa, o que desequilibra a igualdade dos cidadãos nas deliberações públicas e pode levar a um problema de legitimidade democrática.
O primeiro standard que propomos é que agentes públicos não podem — assim como os demais cidadãos inclusive — se manifestar, para pedir intervenções golpistas. A limitação encontra amparo no texto constitucional e é perfeitamente razoável proibir que servidores do Estado participem de atos que buscam abolir o Estado de direito (artigo 5º, XLIV, CF). Isso não se confunde com críticas, para aperfeiçoamento institucional. Um policial pedir, em frente a um quartel, que as forças armadas intervenham, para derrubar o presidente eleito não é a mesma coisa do que criticar a violência ou a letalidade das operações policiais. Um critério relevante para se aferir o potencial danoso da ideia, apto a legitimar a punição do agente e a tutela inibitória, é o grau de ressonância da conduta na sociedade. A resposta institucional será tão dura quanto maior for o potencial de dano ao regime democrático.
Durante o período eleitoral, é razoável e proporcional exigir que agentes públicos não divulguem informações obtidas em razão do cargo público que ocupam, ainda que não sigilosas. Ao contrário dos meios jornalísticos de comunicação, que, em virtude da ética profissional, devem checar a veracidade dos fatos e possibilitar o direito de resposta, a divulgação pelos servidores públicos com base em seu ponto de vista individual e sem a outra versão da história, pode comprometer o andamento de investigações, de procedimentos administrativos e, ao fim, do interesse público.
Além do comprometimento da atividade administrativa ou investigativa, o candidato terá um enorme ônus de desmentir a informação a que o servidor tinha acesso de forma privilegiada. A atuação pode vir a ser caracterizada como política, para favorecer um candidato, em contrariedade à legislação eleitoral. Nessa hipótese, o direito de resposta ou a retirada do conteúdo de circulação dificilmente serão suficientes para reparar o dano. Dependendo dos elementos que constam no processo administrativo ou no inquérito, se incipientes, podem ter o mesmo caráter danoso do que um factoide. Pense-se, por exemplo, em um juiz, em um membro do Ministério Público ou em um servidor responsável pela condução de inquérito qualquer que divulga diligências ainda em andamento, ao qual o investigado ainda não teve acesso, ou acusações baseadas em notícia de fato anônima sem nenhum elemento que a ampare. Não bastasse o prejuízo ao pleito, a parcialidade objetiva na investigação pode ser contaminada, já que um ato do tipo tende a favorecer o candidato opositor.
Outro parâmetro durante o período eleitoral é a vedação à publicação, em redes sociais, de apoio a um candidato específico, por servidores lotados em cargos estratégicos, direta ou indiretamente, durante a eleição. Não se trata de proibir as manifestações a favor de um candidato, que podem ser realizadas na rua, em comícios, ou mesmo em outras formas. Aqui entra em jogo a rastreabilidade da manifestação e a capacidade de minar a legitimidade de uma política pública ou até mesmo do pleito. É o caso da postagem do diretor da Polícia Rodoviária Federal em favor do candidato Bolsonaro. As operações heterodoxas para um domingo de eleição associadas à declaração de voto minam a legitimidade da instituição e revelam o abuso de poder político capaz de desequilibrar a igualdade de condições no pleito.
Servidores públicos também não podem emitir manifestações em veículos com alto potencial de alcance do conteúdo informacional que contrariem estudos técnico realizados segundo o método científico. O agente público, que se apresenta no debate público como tal, não pode difundir e advogar teorias refutadas cientificamente ou ainda não comprovadas. Como pressupõem os autores de direito administrativo, o servidor público presenta a Administração Pública. Portanto, deve ter compromisso com a verdade — ou ao menos com a veracidade — dos fatos e dos métodos comprovados, já que é braço da execução de políticas públicas. Assim, um médico de hospital público não pode propagar, em suas redes sociais, a utilização de tratamento contra determinada doença sem comprovação científica ou de ineficácia comprovada segundo a literatura médica.
É salutar que os atos administrativos sejam dissociados da imagem dos responsáveis pela concretização. Uma liberdade de expressão ilimitada pode colocar em risco a validade dos atos administrativos de execução de políticas públicas. Em determinados casos, pode enfraquecer o próprio Estado democrático de direito. Por esse motivo, é importante que os atos estatais tenham como base razões públicas.
A restrição da liberdade de expressão dos servidores públicos, que se encontram em relação de sujeição especial, é legítima quando a argumentação do indivíduo contaminar a impessoalidade da atividade administrativa, de modo que não seja justificável no fórum público sobre questões constitucionais e fundamentais básicas do Estado democrático de direito. O agente do Estado não pode fazer prevalecer a sua concepção de vida boa individual, impregnando-a na atividade administrativa. O discurso corrompe a legitimidade dos atos públicos e impede que o argumento ou que o exercício da função administrativa possa ser endossado por todos os cidadãos. A separação entre a voz da autoridade e a do cidadão em relação especial de sujeição é essencial não só para igualdade na esfera pública e para que os cidadãos sejam vistos como livres e iguais, mas também para a saúde das próprias instituições.
[1] Não são apenas os funcionários públicos que estão nesse tipo de relação, já que ela é aplicável a qualquer pessoa que possua alguma relação jurídica com órgãos estatais, como militares, estudantes da rede pública, presos etc.
[2] Cf. PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. Interpretação constitucional e direitos fundamentais: uma contribuição ao estudo das restrições aos direitos fundamentais na perspectiva da teoria dos princípios. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 385.
[3] Sobre os valores intrínseco e instrumental, confira-se: LOPES, Eduardo Lasmar Prado. Regulação é censura? Igual liberdade de expressão e democracia na Constituição de 1988. Dados [online]. 2023, v. 66, n. 3 [Acessado 9 Novembro 2022], e20190061. Disponível em: <https://doi.org/10.1590/dados.2023.66.3.298>. Epub 10 Out 2022. ISSN 1678-4588. https://doi.org/10.1590/dados.2023.66.3.298.
[4] Cf. RAWLS, John. O liberalismo político. Tradução: Álvaro de Vita. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 12.